Vigia de Nazaré, uma das cidades mais antigas da Amazônia, guarda em suas ruas, portos e arquivos histórias que não cabem nos monumentos. Entre elas, a história da população negra, homens e mulheres que construíram a cidade com seu trabalho, seus saberes, sua espiritualidade e suas lutas.
Esta exposição convida você a percorrer essas memórias: da escravidão às liberdades possíveis; das revoltas populares às celebrações; do silêncio imposto... à força criadora que permanece.
Na imagem, o Plano do porto da Vigia, levantado e elaborado em 1843 pela Marinha Francesa. ( Depôt general de la Marine, 1846. )
Registros da Câmara, inventários e documentos de proprietários locais mostram que homens e mulheres escravizados circulavam pela cidade como parte do comércio marítimo e fluvial. Canoas e barcos transportavam pessoas destinadas a engenhos, fazendas, casas urbanas e pequenas propriedades. O porto era, ao mesmo tempo, lugar de embarque, de trocas e de vigilância.
A presença negra sustentou atividades essenciais da economia vigiense pesca, transporte, serviços domésticos, construção, estivas e atividades portuárias. Assim, Vigia participou de uma rede mais ampla do escravismo amazônico que articulava litoral, estreitos braços de rios e áreas rurais.
FONTE: Cultura Vigilenga.
Quadro elaborado por Antônio Coutinho.
Nas ruas de Vigia, a população negra estruturou a vida urbana. Escravizados e libertos atuavam como pescadores, canoeiros, quitandeiras, cozinheiras, pedreiros, carpinteiros, lavadeiras, vendedores ambulantes. Muitos possuíam autonomia relativa, negociando horários, acumulando ganhos e construindo redes de solidariedade.
As casas, vielas e mercados eram espaços marcados pela presença negra. No porto, estivas; no comércio, quitandas; no artesanato, mãos negras erguiam casas, pontes e estruturas. Mulheres negras, em especial, protagonizaram formas de trabalho e circulação que redefiniram a economia doméstica e popular da cidade. Entre as doceiras mais célebres da Vigia, destaca-se a figura da negra Elisa, ainda no século XIX, cuja produção açucareira artesanal circulava como um marcador de sociabilidade e de habilidade feminina em um contexto dominado por hierarquias raciais e econômicas. No início do século XX, essa tradição atravessa gerações e ganha novas vozes com Tia Júlia e, sobretudo, com Francisca Lima do Espírito Santo Barros, a inconfundível “Tia Pê” (1915–1976).
No pós-abolição, muitos desses trabalhadores mantiveram seus ofícios, agora atuando como assalariados ou autônomos. A experiência acumulada durante a escravidão foi reconfigurada como capital cultural e econômico. Essas práticas deram origem a expressões culturais, culinárias e rituais que ainda ecoam na memória coletiva vigiense.
Fonte: Cultura Vigilenga.
O vínculo entre Cabanagem e abolicionismo, embora distante cronologicamente, expressa uma continuidade nos atos resistência da população negra e mestiça da Amazônia. Em Vigia, a memória desses conflitos alimentou discursos de justiça e igualdade. A pintura dos artistas Silvio Guedes e Gerson Pinto retratam o ataque ao Palácio Trem de Guerra, na eclosão da cabanagem em Vigia de Nazaré.
Vigia não esteve à margem da Cabanagem (1835–1840). A cidade registrou motins, circulação de revoltosos e repressão contra suspeitos de aderir ao movimento. A população negra, escravizada ou livre, compôs redes políticas e afetivas que se entrelaçaram às rebeldias populares.
A Cabanagem deixou cicatrizes profundas: destruição, perseguições, tensões entre elites e setores pobres. Mas também deixou marcada a evidência de que a população negra e indígena da região desejava e lutava por transformações políticas e sociais.
No final do século XIX, com a chegada dos debates abolicionistas, ideias de liberdade e cidadania ressoaram tanto no Grão-Pará quanto em Vigia. Posturas antiescravistas circularam por jornais, prédicas religiosas, debates locais e sociabilidades urbanas.
À esquerda domingos Antônio Raiol, e ao lado, o inventário de seu pai, assassinado pelos cabanos durante a revolução.
O inventário de Pedro Antônio Raiol, morto durante a Cabanagem, está presente no arquivo documental da Sociedade Literária e Beneficente Cinco de Agosto. Esse inventário, expõe a estrutura escravista que sustentava parte das elites vigiense no século XIX. Entre terras, engenhos e utensílios, aparecem também os cativos registrados como “bens”, avaliados e distribuídos como se fossem objetos, um retrato brutal da economia e da mentalidade senhorial da época.
Ao lado dessa memória documental, a fotografia de Domingos Antônio Raiol, o Barão de Guajará, figura proeminente d Vigia, lembra que prestígio social e produção intelectual não estavam dissociados do sistema escravista. Proprietário de engenho e de pessoas escravizadas, Domingos Raiol, pertencia a uma linhagem cujos privilégios foram construídos sobre o trabalho forçado de homens e mulheres negros, cuja presença é sistematicamente apagada das narrativas tradicionais. Domingos Antônio Raiol, filho de Pedro Antônio Raiol, escreveu os famosos livros "Motins Políticos ou história dos principais acontecimentos políticos da província do Pará desde o ano de 1821 até 1835."
A abolição não trouxe igualdade plena. O início da República reorganizou a cidade, mas manteve mecanismos de exclusão: segregação no mercado de trabalho, vigilância sobre pobres, regras morais rígidas e pouco acesso aos espaços formais de decisão.
Ex-escravizados e seus descendentes enfrentaram obstáculos para adquirir terras, para ser reconhecidos como trabalhadores qualificados e para participar da política republicana nascente. A violência simbólica, e física, marcou a transição entre escravidão e cidadania.
Em Vigia, o movimento abolicionista ganhou destaque com a atuação de Bertoldo Nunes — professor, político, escritor e jornalista. Desde a década de 1870, quando secretariou a Sociedade Cinco de Agosto e editou O Liberal da Vigia, tornou-se voz ativa contra a escravidão.
Em 1878, celebrou a vitória liberal registrando em cartório a Carta de Liberdade do escravizado Basílio da Luz, ato simbólico realizado pelo irmão tabelião, Raymundo Nunes da Costa. Em Belém, Bertoldo ampliou sua militância ao lado do irmão Gemino Seabra Nunes, participando da Associação Filantrópica de Emancipação de Escravos (1881) e da Comissão Central de Emancipação.
Professor Bertoldo Nunes, um dos grandes nomes do abolicionismo na cidade de Vigia.
A Sociedade Literária e Beneficente Cinco de Agosto guarda parte dessas memórias. EM parte de seu arquivo, está presente vários documentos que revelam presenças negras muitas vezes apagadas pelos relatos oficiais.
A entidade Cinco de Agosto, ao preservar esse acervo, contribui para rastrear trajetórias subjetivas e coletivas que não aparecem nas narrativas hegemônicas. Ao digitalizá-los e torná-los acessíveis, a Cinco de Agosto faz um ato político: restitui memória, democratiza conhecimento e fortalece o vínculo entre passado e presente.
história negra de Vigia continua. Está nas ruas, nas famílias, no modo de falar, nas festas, na música, nos cabelos, nos terreiros, nas marés e nas memórias. A negritude vigiense, apesar das desigualdades ainda persistentes, produz arte, ocupa espaços, reivindica direitos e cria novas formas de existir.
Esta exposição não termina aqui. Afinal, a memória negra é viva, tecida no cotidiano, reinventada a cada geração. Que estas histórias provoquem reflexão, diálogo e compromisso.
Vigia não é apenas um território, mas um arquivo vivo de resistências. Honrar essa memória é também construir futuros mais justos .